Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 6: CAPÍTULO II - PÁGINAS SÉRIAS DA MINHA VIDA Pág. 97 / 156

A virtude, conquanto escudada por si própria, é vulnerável, porque se dói aos golpes da injustiça.

Ora, a hipocrisia, estribada na manha e na fraudulência, há de, em desaire da justiça de Deus, rebater os tiros da indignação? É impossível. Embora o látego não fira uma fibra sensível nas espáduas do fariseu abroquelado pela impostura; embora a sátira recue espavorida dessas almas impermeáveis à vergonha, é preciso que se escreva um livro, ou se delineiem os traços desse livro, o único, o urgente, o possível, o capitalíssimo para o Porto.

Cansei-me de ouvir dizer que a segunda cidade de Portugal é um enxame de moedeiros falsos, de contrabandistas, de mercadores de negros, de exportadores de escravos e de magistrados de alquilaria. Venalidade, crueza e latrocínio são três eixos capitais sobre que roda, no entender da crítica mordente, o maquinismo social de cem mil almas.

A minha análise aprofunda mais o espírito vital do Porto.

Ali, o viver íntimo tem faces desconhecidas ao olho da polícia e da economia social. Conhecem-se as librés dos chatins de negros; discrimina-se pelo brasão o fabricante de notas falsas do outro seu colega heráldico, opulentado em roubos ao fisco; ignora-se, todavia, o mais observável e ponderoso da biografia desses vultos, que a fortuna estúpida colocou à frente dos destinos e da civilização do Porto.

Ó cidade dos livres, que é da liberdade dos teus escritores?

Se aí há homem de alma, que sacode os sapatos na testeira da riqueza bruta, que testemunho nos dá da sua independência?

O jornalismo do Porto está acorrentado às ucharias dos ricos. O jornalista por via de regra é um pobre homem, que vive do estipêndio cobrado com franciscana humildade à porta do assinante. Para os festins do fidalgo de raça era chamado o versista com as consoantes prévias do soneto na algibeira, onde não havia outra coisa.





Os capítulos deste livro