As Viagens de Gulliver - Cap. 6: Capítulo IV Pág. 279 / 339

Considerava que se os seus ouvidos se acostumassem a estas terríveis palavras, a pouco e pouco escutá-las-ia com menor repúdio. Embora detestasse os yahoos do seu país, já não os criticava pela sua odiosa maneira de ser, colocando-os agora a nível de uma gnmayh (uma ave de rapina) pela sua crueldade ou de uma pedra aguçada que corta o seu casco. Mas quando uma criatura, pretensamente racional, era capaz de tais enormidades, temia que a corrupção da mente fosse pior que a própria animalidade. Julgava poder afirmar, então, que em vez de raciocínio éramos dotados de um determinado atributo adequado a incrementar os nossos defeitos naturais, do mesmo modo que as águas turbulentas de uma corrente reflectem a imagem de um corpo disforme de modo ampliado e distorcido.

Acrescentou que me referira, nesta e em anteriores conversas, a um ponto que lhe causava agora uma certa perplexidade. Explicara que alguns membros da nossa tripulação haviam fugido do respectivo país por terem sido condenados por lei; que já explicara o significado deste vocábulo; mas não percebia como podia acontecer que a lei, concebida para assegurar a protecção de todos, servisse para aniquilar uns tantos. Por conseguinte, desejava explicações adicionais sobre o que eu entendia por lei, sobre os seus administradores e a sua prática actual no meu próprio país; porque considerava que a razão e a natureza eram guias suficientes para os animais racionais que nós pretendíamos ser, uma vez que ambas nos indicam o que deve fazer-se e o que deve evitar-se.

Assegurei a Sua Excelência que não era muito versado na ciência do direito. Além disso, a minha experiência limitava-se a ter contratado em vão alguns advogados ante certas injustiças de que fora vítima. Dar-lhe-ia, apesar de tudo, todas as explicações que pudesse.





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