Então o excesso do terror e da desesperação produziu naquele espírito, onde por anos se desenvolvera e alimentara constante irritação, uma destas revoluções morais em que, no meio de tormentosa crise, o homem se transmuda em outro homem. Ergueu-se, e com gesto desvairado bradou:
– Está bom! Ninguém se compadece de mim! Serei açoutado como um vil servo judeu! O bobo receberá essa afrontosa pena; mas ele se converterá num demónio...
Neste ponto Martim Eicha, que cruzava o limiar da porta, voltou os olhos e fitando-os no bufão deu uma risada. A seguiu, cerrando os punhos e mordendo-os: – Ris, vil renegado?!
Ris, alcaiote paceiro?! Um dia virá em que chores!... Vamos, escravos! À risca as ordens do conde covarde!
Dizendo isto, o bobo, com passo firme e no meio dos dois donzéis que nunca o haviam largado, atravessou o corredor escuro. Daí a pouco, em um pátio interior, ouviam-se-lhe os gritos dolorosos por entre o som dos açoutes, e apupos e gargalhadas de pajens, sergentes e cavalariços.