O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio - que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules.
- Hércules pela força - explicava sorrindo, Frei pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cônegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:
- É a última pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cônego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito - que sua excelência tinha muita pilhéria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o Joli. A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, - que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.