VIINo Ramalhete, depois do almoço, com as três janelas do escritório abertas bebendo a tépida luz do belo dia de março, Afonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pé da chaminé já sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar domestico. Numa facha oblíqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifácio, enorme e fofo, dormia de leve a sua sesta.
Craft tornara-se, em poucas semanas, íntimo no Ramalhete. Carlos e ele, tendo muitas similitudes de gosto e de ideias, o mesmo fervor pelo bric-à-brac e pelo bibelot, o uso apaixonado da esgrima, igual diletantismo de espírito, uniram-se imediatamente em relações de superfície, fáceis e amáveis. Afonso, por seu lado começara logo a sentir uma estima elevada por aquele gentleman de boa raça inglesa, como ele os admirava, cultivado e forte, de maneiras graves, de hábitos rijos, sentindo finamente e pensando com rectidão.
Tinham-se encontrado ambos entusiastas de Tácito, de Macaulay, de Burke, e até dos poetas lakistas; Craft era grande no xadrez; o seu carácter ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica solidez de um bronze; para Afonso da Maia «aquilo era deveras um homem». Craft, madrugador, saía cedo dos Olivais a cavalo, e vinha assim às vezes almoçar de surpresa com os Maias; por vontade de Afonso jantaria lá sempre; - mas ao menos as noites passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo enfim, como ele dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conversar bem sentado, no meio de ideias, e com boa educação.
Carlos saía pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquela revoada de clientela que lhe dera esperanças de uma carreira cheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe três doentes no bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavalos, o Ramalhete, os hábitos de luxo, o condenavam irremediavelmente ao diletantismo. Já o fino dr. Theodosio lhe dissera um dia, francamente: «você é muito elegante pra médico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho!