VNo escritório de Afonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chama morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonês, por causa da bronquite de D. Diogo e do seu horror ao ar.
Esse velho dandy, - a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira num leito real - acabava justamente de ter um dos seus acessos de tosse, cavernosa, áspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruína, que ele abafava no lenço, com as veias inchadas, roxo até à raiz dos cabelos.
Mas passara. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão limpou as lágrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compôs a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua água chazada, e perguntou a Afonso, seu parceiro, numa voz rouca e surda:
- Paus, hein?
E de novo, sobre o pano verde, as cartas foram caindo num daqueles silêncios que se seguiam às tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quase silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Vilaça seu parceiro, rezingão, e com todo o sangue na face.
Um tom fino retiniu, o relógio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silêncio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candeeiros Carcel; e a luz assim coada, caindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção cor de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silêncio o ouro de um Sevres, uma palidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majólica.
- O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com ele o rumor distante de bolas de bilhar.
Afonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:
- Como vai ela? Está sossegada?