III
Em duas recordações, a primeira sem provar qualquer coisa definida, e a segunda proporcionando, a meu ver, certa perceção da atmosfera de um período revolucionário:
Bem cedo, em certa manhã, outro homem e eu saímos para caçar fascistas nas trincheiras ao redor de Huesca. A linha deles e a nossa distavam uns trezentos metros uma da outra, pelo que nossos fuzis não podiam funcionar com grande precisão, mas deslizando até um ponto que ficava a uns cem metros do inimigo poderíamos, com sorte, atingir alguém por uma lacuna no parapeito inimigo. Infelizmente o terreno intermediário era um campo plano, plantado com beterrabas, sem cobertura alguma exceto algumas valas, tornando-se necessário sair enquanto ainda estava escuro e regressar logo depois do amanhecer, antes de a luz tornar-se demasiada. Dessa feita não surgiram fascistas, e ficamos tempo demais, sendo apanhados pela alvorada. Estávamos numa vala, mas atrás de nós havia duzentos metros de terreno plano onde não se dispunha de cobertura sequer para um coelho. Estávamos ainda procurando juntar coragem para correr e atravessar aquele espaço, quando um clamor e assovios na trincheira fascista veio anunciar que alguns aeroplanos nossos estavam-se aproximando. Nesse momento um homem, que presumivelmente levava mensagem a um oficial, saltou da trincheira e correu por cima do parapeito, bem à nossa vista. Estava semivestido, e segurava as calças com ambas as mãos enquanto corria. Deixei de atirar nele. É bem verdade que sou mau atirador e não deveria atingir um homem correndo, a cem metros de distância, e também que meu pensamento principal estava em voltar à nossa trincheira enquanto os fascistas estivessem com a atenção voltada para os aeroplanos. Ainda assim, não atirei em parte por causa desse detalhe das calças. Eu viera abrir fogo contra "fascistas", mas um homem que segura as calças nem chega a ser um "fascista", sendo percetivelmente um semelhante, contra quem não se vai disparar.
Que fica demonstrado por incidente assim? Não se trata de grande coisa, pois é o tipo de ocorrência constante em todas as guerras. O outro incidente é diferente, e não creio que ao narrá-lo possa fazer com que se torne comovente para o leitor, mas peço acreditar que o foi para mim, como incidente característico da atmosfera moral de um determinado momento.
Um dos recrutas que vieram ter connosco enquanto eu estava no quartel era um rapaz de olhar esgazeado, vindo das ruas pobres de Barcelona. Estava esfarrapado e descalço, e era extremamente moreno (de sangue árabe, ao que me parece) e fazia gestos que em geral os europeus não fazem.