Retrato do Artista Quando Jovem - Cap. 4: IV Pág. 160 / 273

Mas tinha sido advertido dos perigos da exaltação espiritual, e não se permitia faltar à mínima devoção, esforçando-se, também, através da constante mortificação, mais em desfazer o passado pecaminoso do que em alcançar uma santidade perigosa. Mantinha cada um dos seus sentidos sob rigorosa disciplina. Para mortificar o sentido da visão, decidiu caminhar pelas ruas com os olhos baixos, não olhando para a direita ou para a esquerda e nunca para trás. Os seus olhos evitavam todos os encontros com olhos femininos. De vez em quando, também os contrariava, com um súbito esforço da vontade, como, por exemplo, ao erguê-los a meio de uma frase inacabada, fechando o livro. Para mortificar a audição, não exercia controlo algum sobre a sua voz, que estava a mudar, nem cantava nem assobiava, nem fazia qualquer esforço para fugir aos ruídos que lhe provocavam uma irritação nervosa, como, por exemplo, o amolar das facas no afiador, a raspagem das cinzas com a pá e o bater dos tapetes. Mortificar o olfacto era mais difícil, porque não sentia uma instintiva repugnância pelos maus odores, quer fossem os do mundo exterior, como os dos excrementos ou do alcatrão, quer os odores da sua própria pessoa, entre os quais fizera muitas comparações e experiências curiosas. Acabou por descobrir que o único odor contra o qual o seu olfacto se revoltava era um certo fedor a peixe estragado, como o da urina conservada durante muito tempo; e, sempre que era possível, sujeitava-se a esse odor desagradável. Para mortificar o sentido do paladar, praticava hábitos estritos à mesa, observava à risca todos os jejuns da Igreja e procurava, pela distracção, afastar a sua mente dos sabores dos diversos alimentos. Mas foi à mortificação do tacto que ele dedicou a mais assídua inventividade e imaginação.





Os capítulos deste livro