Retrato do Artista Quando Jovem - Cap. 4: IV Pág. 162 / 273

O livro que usava para essas visitas era um velho livro maltratado, escrito por Santo Afonso Liguori, com as letras sumidas e folhas secas e descoloridas. A sua alma parecia evocar um mundo desaparecido de amor fervente e reacções virginais, ao ler as suas páginas, em que o simbolismo dos cânticos era intercalado com as orações dos comungantes. Uma voz inaudível parecia acariciar-lhe a alma, falando-lhe de nomes e de glórias, pedindo-lhe que se erguesse como para os esponsais e convidando-a a olhar, como uma esposa, do alto de Amana e das montanhas dos leopardos; e a alma parecia responder com a mesma voz inaudível, abandonando-se: Inter ubera mea commorabitur (Ele permanecerá entre os meus seios).

Esta ideia de abandono exercia uma atracção perigosa para a sua mente, agora que ele sentia a alma novamente cercada pelas vozes insistentes da carne, que haviam recomeçado a murmurar durante as suas orações e meditações. Dava-lhe uma intensa sensação de poder saber que poderia, com um simples acto de consentimento, num pensamento momentâneo, desfazer tudo o que fizera. Parecia sentir uma torrente que avançava lentamente em direcção aos seus pés descalços, e estar à espera que a primeira onda, leve, tímida e silenciosa, aflorasse a sua pele febril. Depois, quase no momento do contacto, quase à beira da aceitação pecaminosa, dava consigo bem longe da maré, numa praia seca, salvo por um súbito acto da vontade ou uma súbita jaculatória; e, vendo a linha prateada da maré lá ao longe, recomeçando o seu lento avanço em direcção aos seus pés, a sua alma era agitada por uma nova emoção de poder e de satisfação, ao saber que não tinha cedido nem desfeito tudo.

Depois de ter fugido à torrente da tentação por muitas vezes, desta forma, sentiu-se perturbado e perguntou a si mesmo se a graça que se recusara a perder não estaria a ser-lhe roubada pouco a pouco.





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