Cranly apertou o braço de Stephen:
- Calma, meu amigo. És uma pessoa estupidamente exaltada, bem sabes.
Riu-se nervosamente ao falar e, fitando o rosto de Stephen com olhos emocionados e cheios de amizade, disse:
- Sabes que és uma pessoa exaltada?
- Acho que sou - disse Stephen, rindo-se também.
Os seus espíritos, ultimamente afastados, pareceram aproximar-se subitamente um do outro.
- Acreditas na eucaristia? - perguntou Cranly.
- Não - disse Stephen,
- Então descrês dela?
- Não acredito nem deixo de acreditar - respondeu Stephen.
- Há muita gente que tem dúvidas, até mesmo os religiosos, mas ultrapassam-nas ou põem-nas de parte - disse Cranly. - As tuas dúvidas a esse respeito são muito fortes?
- Eu não quero ultrapassá-las - respondeu Stephen.
Cranly, momentaneamente embaraçado, tirou outro figo do bolso e preparava-se para o comer quando Stephen disse:
- Não faças isso, por favor. Não podemos discutir este assunto, tendo tu a boca cheia de figo mastigado.
Cranly observou o figo à luz dum candeeiro sob o qual parara.
Depois, cheirou-o com ambas as narinas, deu-lhe uma pequena dentada, cuspiu-a e atirou o figo bruscamente para a valeta.
Apostrofando-o, disse:
- Afasta-te de mim, maldito, precipita-te no fogo eterno! Dando o braço a Stephen, continuou a caminhar, dizendo:
- Não receias que estas palavras te possam ser ditas no dia do Julgamento?
- O que me é oferecido em contrapartida? - perguntou Stephen. - Uma eternidade de felicidade na companhia do deão dos estudos?
- Lembra-te - disse Cranly - de que ele seria glorificado.
- Sim - disse Stephen com certa amargura -, seria brilhante, ágil, impassível e, acima de tudo, subtil.
- É uma coisa curiosa, podes crer - disse Cranly, desapaixonadamente -, ver como a tua mente está supersaturada pela religião em que dizes não acreditar.