Retrato do Artista Quando Jovem - Cap. 2: II Pág. 86 / 273

Deteve-se e olhou para o sombrio portal da morgue e depois para a calçada escura junto dela. Viu a palavra DIREITOS na parede da calçada e inspirou lentamente o ar pesado e espesso. «Cheira a urina de cavalo e a palha podre», pensou. «É um bom cheiro. Vai acalmar o meu coração. O meu coração já está calmo. Vou regressar.»

Stephen encontrava-se, uma vez mais, sentado ao lado do pai, a um canto de uma carruagem de caminho-de-ferro, em Kinsbridge. Viajava com o pai no comboio-correio da noite para Cork. Quando o comboio saiu da estação, expelindo fumo, recordou-se do seu espanto infantil, anos antes, e de todos os acontecimentos do seu primeiro dia em Clongowes. Mas, agora, o espanto desaparecera. Via as terras que escureciam ficarem para trás, os silenciosos postes telegráficos passarem rapidamente pela sua janela de quatro em quatro segundos, as pequenas estações cintilantes, servidas por sentinelas silenciosas, deixadas para trás pelo comboio e brilhando, por momentos, na escuridão, como grãos ardentes atirados para trás por um corredor.

Escutou sem simpatia a evocação que o pai fazia de Cork e das cenas da sua juventude, uma história interrompida por suspiros ou goladas do frasco de bolso, sempre que evocava subitamente a finalidade da sua visita actual. Stephen escutava-o mas não conseguia sentir pena. As imagens dos mortos eram todas estranhas para ele, com excepção do tio Charles, uma imagem que começava a esvair-se da sua memória. Sabia, no entanto, que a propriedade do seu pai ia ser vendida em leilão, e, ao sentir-se, também, privado dela, sentia que o mundo desmentia grosseiramente a sua fantasia.

Adormeceu em Maryborough. Quando acordou, o comboio tinha ultrapassado Mallow e o pai estava estendido, a dormir, no outro banco.





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