As Viagens de Gulliver - Cap. 4: Capítulo II Pág. 102 / 339
E tal qualificativo era, para minha infelicidade, merecido, pois aconselhou o meu amo a que me exibisse num dia de mercado na cidade mais próxima, que distava umas vinte e duas milhas meia hora a cavalo de nossa casa. Adivinhei que estavam a tramar algo quando observei o meu amo a falar em segredo com o seu amigo e a apontarem para mim de tempos a tempos; devido ao temor que me infundiam, pensei que me tinha apercebido do teor da sua conversa. Mas Glumdalclitch, a minha pequena ama, contou-me tudo no dia seguinte: conseguira, com subtileza, que a mãe lhe dissesse o que se passara. A infeliz menina encostou-me ao seu regaço e começou a chorar de vergonha e pena. Temia que aquelas pessoas grosseiras e vulgares me fizessem mal; ao agarrarem-me com as suas mãos poderiam partir-me qualquer osso ou apertar-me mortalmente. Ela também percebera o meu natural recato e manifestara a maior delicadeza quanto à minha honra e compreendia a indignidade que sentiria ao ver-me exposto como atracção de circo perante uma multidão ignara. Confessou que os pais lhe tinham prometido que Gildrig lhe pertencia, mas verificava agora que queriam fazer o mesmo que tinham feito no ano passado: ofereceram-lhe um cordeiro e, quando estava já gordo e criado, venderam-no a um talhante. Posso confessar que, pelo meu lado, estava menos preocupado que a minha pequena ama. Tinha a esperança firme e inquebrantável de que um dia voltaria a ser livre. No que dizia respeito à ignomínia de ser exibido como um monstro, considerava-me um perfeito forasteiro no país e pensei que nunca ninguém me censuraria por tal desgraça se alguma vez voltasse a Inglaterra; o próprio monarca da Grã-Bretanha teria sido igualmente humilhado em circunstâncias análogas.