As Viagens de Gulliver - Cap. 5: Capítulo III Pág. 229 / 339

Isto fez com que me surpreendesse menos quando tomei conhecimento de casos análogos noutros países, onde os mais diversos vícios se encontram em pleno apogeu desde há muito tempo e onde os grandes chefes militares ficam com os louros das vitórias e com a parte de leão dos despojos, quando seriam talvez os que menos direito teriam a ambos.

O facto de todas as personagens convocadas apresentarem o primitivo aspecto que tinham em vida levou-me a pensamentos melancólicos, ao ver como degenerara a espécie humana nos últimos cem anos; como as diversas sequelas da varíola tinham desfigurado as feições dos rostos ingleses, diminuído a altura, tirado a fibra, relaxado os músculos e tendões, empalidecido as faces e tornado as carnes flácidas e doentias.

Acabei por pedir que, pelo menos, me aparecesse algum pequeno proprietário inglês da velha cepa, famosa pela simplicidade dos modos, pela forma de alimentar-se e vestir-se, pela probidade nos negócios, pelo seu verdadeiro espírito de liberdade, valor e amor pátrias. Ao comparar os vivos com os defuntos não pude deixar de emocionar-me: verifiquei como aquelas primitivas virtudes nativas se tinham degenerado nos descendentes, prostituídos por dinheiro, vendendo votos e manipulando eleições, adquirindo todos os vícios e corrupções da corte.