..»
«Não», disse eu. «Não provei. E agora já foi tudo borda fora.»
Atrás de mim, ouviu-se uma voz suave, educada, dizer: «Provei eu. Parecia uma mistura de tudo o que é possível, era adocicado e salgado... um sabor horrível».
Saindo da dispensa, Ransome devia estar a ouvir já há algum tempo a nossa conversa, o que nele era perfeitamente desculpável.
«Uma partida indecente», disse Burns. «Eu bem disse sempre que ele nos havia de estar a tramar alguma!»
A força da minha indignação perdia todos os limites. E aquele médico simpático, afável, também ele... O único homem dotado de efectiva simpatia que eu jamais tinha conhecido... em vez de se pôr para ali a escrever a sua carta cheia de recomendações, num verdadeiro requinte de atenção - porque é que o raio do homem não procedera a uma inspecção como devia ser? Mas realmente, não era lá muito justo acusar o médico. As coisas deviam estar arrumadas em boa ordem, e a farmácia de um navio é algo que obedece a normas oficiais. Não havia nela nada que pudesse despertar a mínima suspeita. A quem me era impossível perdoar jamais era a mim próprio. Não devia ter confiado nunca daquele modo nas coisas. A semente de um remorso eterno mergulhava na terra do meu peito.
«Sinto cá dentro que a culpa foi toda minha», exclamei. «Só minha e de mais ninguém. É que sinto. Nunca me poderei perdoar,»
«Isso é uma loucura completa, comandante», disse Burns, num acesso de fúria.
E a seguir a tal esforço, tombou de costas, exausto, no beliche, fechou os olhos e ficou arquejante. Aquela história, aquela surpresa abominável, tinha-o abalado igualmente. Ao voltar-me para sair, notei que Ransome me estava a fitar, empalidecido de tão confuso. Percebia perfeitamente o que tudo aquilo significava, mas conseguiu, apesar de tudo, fazer subir aos lábios o seu sorriso afável e pensativo.