Mas tinha um aspecto medonho. O ar não se mexia. Perante nova solicitação de Ransome, desci até à câmara, para, segundo as palavras dele, «fazer por comer alguma coisa». Não sei se o meu esforço teve grande efeito. Julgo que durante todo aquele período vivi alimentando-me do mesmo modo que me era antes habitual, mas a memória que guardo é a de a minha vida se manter, ao longo daqueles dias, ao preço de uma ansiedade imbatível, como se esta fosse uma espécie de excitante que reanima ao mesmo tempo que desgasta.
Foi a única fase da minha vida em que tentei escrever um diário. Não, não foi a única. Anos mais tarde, em circunstâncias de isolamento moral, deitei no papel as ideias e factos decorridos ao longo de algumas dezenas de dias. Mas era a primeira vez. Não me lembro como foi que começou, nem como o caderno de apontamentos e o lápis me vieram ter à mão. Não posso imaginar-me a procurá-los com a menor deliberação. Calculo que tenham sido eles a salvar-me daquela atitude dementada de falar sozinho.
É muito estranho, nos dois casos, que eu tenha dado em escrever o diário em circunstâncias em que não contava por assim dizer, na linguagem de todos os dias - ver-me livre do sarilho em que estávamos metidos. Não esperava sequer que aquele registo me viesse a sobreviver. O que mostra que se tratava de uma pura necessidade pessoal e de alcance íntimo, e não de uma exigência egoísta de amor-próprio.
Revelo aqui um novo extracto desse diário, um número reduzido de linhas, que possuem agora uma aparência de horror aos meus olhos, e que transcrevo do que garatujei precisamente naquele mesmo dia à noite:
Passa-se no céu algo de semelhante a uma decomposição, a uma espécie de corrupção do ar, que continua entretanto quieto como sempre.