A Linha de Sombra - Cap. 5: III Pág. 75 / 155

Não escrevia aos armadores, nunca escreveu à sua velha mulher... - e também não lhe voltaria mais a escrever. Tinha decidido libertar-se de tudo. Era assim. Não se incomodava com o serviço, não se importava com os carregamentos, com fazer ou não qualquer viagem... Não se ralava com coisa nenhuma. A sua ideia era andar com o navio pelo mundo fora, até se perder com toda a tripulação.»

Burns tinha a expressão de um homem que tivesse escapado a um grande perigo. Faltou pouco para que exclamasse: «Se não fosse eu!», e a transparente inocência do seu olhar indignado era singularmente acentuada pelos altaneiros bigodes, que começou a retorcer na horizontal, como que para os tornar ainda mais compridos.

Se não estivesse ocupado com as minhas próprias impressões, diferentes das de Burns, teria sido muito mais capaz de sorrir de tudo aquilo. Era eu já o comandante. O que sentia em mim era diferente do que sentia qualquer outro homem a bordo. No interior da comunidade onde me encontrava agora, como um rei no seu país, numa classe que era exclusivamente minha, ali estava eu. Estou a falar, evidentemente, de um rei hereditário e não de um simples homem de Estado eleito. Chegara ali para governar por acção de uma intervenção tão remota ao meu povo e quase tão incompreensível aos seus olhos como a Graça de Deus.

E tal como um elemento de uma dinastia, experimentando um laço quase místico com os mortos, sentia-me profundamente horrorizado com o meu antecessor próximo.

Aquele homem, no essencial, exceptuando a idade, fora idêntico a qualquer outro, como eu. No entanto, o fim da sua vida foi uma traição completa, uma infidelidade a uma tradição que me parecia a mim imperativa como nenhuma outra tem possibilidade de o ser, neste mundo.





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