Podíamos muito bem ter poupado um ao outro esta cena inútil de pugilato verbal. Passados não muitos dias, seria Burns a defender perante mim a sua causa, insistindo para que eu não o deixasse em terra, retribuindo-lhe eu com respostas ambíguas. O conjunto da história chegaria assim a tomar um aspecto próximo do trágico.
Mas este terrível problema era somente uma peripécia sem nada de essencial, um simples contratempo em relação ao problema global de saber como se poria aquele navio, agora meu, com todos os seus suplentes e tripulantes, de corpo e alma, ali adormecido no rio empestado como se poria aquele navio no mar.
Ainda quando comandante interino, Burns precipitara-se a rubricar um contrato de carregamento que, num mundo ideal e sem astúcias, poderia ter sido um papel magnífico. Mas, assim que passei os olhos pelas suas linhas, adivinhei dificuldades à proa - a menos que a gente do outro lado fosse excepcionalmente leal e aberta na discussão dos termos.
Quando comuniquei estes receios a Burns, ele resolveu ficar muito ofendido com isso. Fitou-me com o seu olhar incrédulo do costume e disse acidamente:
«Julgo que o senhor comandante me quer dar a entender que me portei como um idiota.»
Aplicando a minha amabilidade metódica, o que parecia fazer aumentar sempre o seu espanto, respondi que não lhe queria dar a entender coisa nenhuma. Deixava inteiramente ao futuro a solução do problema.
E não há dúvida de que o futuro trouxe numerosos contratempos. Houve dias em que me habituei a recordar o capitão Giles com bastante horror. A sua esperteza dos infernos é que me pusera naquele lugar; por outro lado, a profecia que fizera no sentido de eu vir a ter «as mãos a abarrotar» realizava-se de tal forma que parecia ter sido um gracejo trocista perante a minha pureza inocente.
