carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…
…Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas - tranquilas, mortas também.
* * *
A luz normal regressara. Era tempo. Mulheres debatiam-se em ataques de histerismo; homens, de rostos congestionados, tinham gestos incoerentes…
As portas abriram-se e nós mesmos, perdidos, sem chapéus - encontramo-nos na rua, afogueados, perplexos… O ar fresco da noite, vergastando-nos, fez-nos despertar, e como se chegássemos de um sonho que os três houvéssemos sonhado - olhamo-nos inquietos, num espanto mudo. Sim, a impressão fora tão forte, a maravilha tão alucinadora, que não tivemos ânimo para dizer uma palavra.
Esmagados, aturdidos, cada um de nós voltou para sua casa…
Na tarde seguinte - ao acordar de um sono de onze horas - eu não acreditava já na estranha orgia: A Orgia do Fogo, como Ricardo lhe chamou depois.
Saí. Jantei.
Quando entrava no Café Riche, alguém me bateu no ombro:
- Então como passa o meu amigo? Vamos, as suas impressões?
Era Ricardo de Loureiro.
Falamos largamente acerca das extraordinárias coisas que presenciáramos. E o poeta concluiu que tudo aquilo mais lhe parecia hoje uma visão de onanista genial do que a simples realidade.
* * *
Quanto à americana fulva, não a tornei a ver. O próprio Gervásio deixou de falar nela. E, como se se tratasse de um mistério de Além a que valesse melhor não aludir - nunca mais nos referimos à noite admirável.
Se a sua lembrança me ficou para sempre gravada, não foi por a ter vivido - mas sim porque, dessa noite, se originava a minha amizade com Ricardo de Loureiro.