CAPÍTULO 3 No dia seguinte, de novo nos encontramos, como sempre, mas não aludimos à estranha conversa da véspera. Nem no dia seguinte, nem nunca mais… até ao desenlace da minha vida…
Entretanto, a perturbadora confidência do artista não se me varrera da memória. Pelo contrário - dia algum eu deixava de a relembrar, inquieto, quase numa obsessão.
Sem incidentes notáveis - na mesma harmonia, no mesmo convívio de alma - a nossa amizade foi prosseguindo, foi-se estreitando. Após dez meses, nos fins de 1896, embora o seu grande amor por Paris, Ricardo resolveu regressar a Portugal - a Lisboa, onde em realidade coisa alguma o devia chamar.
Estivemos um ano separados.
Durante ele, a nossa correspondência foi nula: três cartas minhas; duas do poeta - quando muito.
Circunstâncias materiais e as saudades do meu amigo levaram-me a sair de Paris, definitivamente, por meu turno. E em Dezembro de noventa e sete chegava a Lisboa.
Ricardo esperava-me na estação.
Mas como o seu aspeto físico mudara nesse ano que estivéramos sem nos ver!
As suas feições bruscas haviam-se amenizado, acetinado - feminilizado, eis a verdade - e, detalhe que mais me impressionou, a cor dos seus cabelos esbatera-se também. Era mesmo talvez desta última alteração que provinha, fundamentalmente, a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo - fisionomia que se tinha difundido, Sim, porque fora esta a minha impressão total: os seus traços fisionómicos haviam-se dispersado - eram hoje menores.
E o tom da sua voz alterara-se identicamente, e os seus gestos: todo ele, enfim, se esbatera.
Eu sabia já, é claro, que o poeta se casara há pouco, durante a minha ausência. Ele escrevera-mo na sua primeira carta; mas sem juntar pormenores, muito brumosamente - como se se tratasse de uma irrealidade.