CAPÍTULO 4 Atordoaram-me, positivamente me atordoaram, as palavras do russo.
Pois seria possível? Ricardo trouxera-a de Paris?… Mas como não a conhecera eu, sendo assim? Acaso não o teria acompanhado à gare do Quai d'Orsay? Fora verdade, fora, não o acompanhara - lembrei-me de súbito. Estava doente, com um fortíssimo ataque de gripe… E ele… Não; era impossível… não podia ser…
Mas logo, procurando melhor nas minhas reminiscências, me ocorreram pela primeira vez, nitidamente me ocorreram, certos detalhes obscuros que se prendiam com o regresso do artista a Portugal.
Ele amava tanto Paris… e decidira regressar a Portugal… Declarara-mo, e eu não me tinha admirado - não tinha admirado como se houvesse uma razão que justificasse, que exigisse esse regresso.
Ai, como me arrependia hoje de, com efeito, o não ter acompanhado à estação, embora o meu incómodo, e talvez ainda outro motivo, que eu depois esquecera. Entretanto recordava-me de que, apesar da minha febre, das minhas violentas dores de garganta, estivera prestes a erguer-me e a ir despedir-me do meu amigo… Porém, em face do um torpor físico que me invadira tudo, deixara-me ficar estendido no leito, imerso numa profunda modorra, numa estranha modorra de penumbra…
* * *
Aquela mulher, ah! aquela mulher…
Quem seria… quem seria?… Como sucedera tudo aquilo?…
E só então me lembrei distintamente da carta do poeta pela qual se me afigurava ter sabido do seu enlace: a verdade era que, de forma alguma, ele me participava um casamento nessa carta; nem sequer de longe aludia a esse ato - falava-me apenas das "transformações da sua vida", do seu lar, e tinha frases como esta que me bailava em letras de fogo diante dos olhos: "agora, que vive alguém a meu lado;