(E, entre parênteses, convém-me acentuar que meço muito bem a estranheza de quanto deixo escrito. Logo no princípio referi que a minha coragem seria a de dizer toda a verdade, ainda quando ela não fosse verossímil.)
* * *
A partir daí, comecei frequentando amiudadas noites a casa de Ricardo. As sensações bizarras tinham-me desaparecido por completo, e eu via agora nitidamente a sua esposa.
Era uma linda mulher loira, muito loira, alta, escultural - e a carne mordorada, dura, fugitiva. O seu olhar azul perdia-se de infinito, nostalgicamente. Tinha gestos nimbados e caminhava nuns passos leves, silenciosos - indecisos, mas rápidos. Um rosto formosíssimo, de uma beleza vigorosa, talhado em ouro. Mãos inquietantes de esguias e pálidas.
Sempre triste - numa tristeza maceradamente vaga - mas tão gentil, tão suave e amorável, que era sem dúvida a companheira propícia, ideal, de um poeta.
Cheguei a invejar o meu amigo…
Durante seis meses a nossa existência foi a mais simples, a mais serena. Ah! esses seis meses constituíram em verdade a única época feliz, em névoas, da minha vida…
Raros dias se passavam em que não estivesse com Ricardo e Marta. Quase todas as noites nos reuníamos em sua casa, um pequeno grupo de artistas: eu, Luís de Monforte, o dramaturgo da Glória; Aniceto Sarzedas, o verrinoso crítico; dois poetas de vinte anos cujos nomes olvidei e - sobretudo - o conde Sérgio Warginsky, adido da legação da Rússia, que nós conhecêramos vagamente em Paris e que eu me admirava de encontrar agora assíduo frequentador da casa do poeta. Às vezes, com menor frequência, apareciam também Raul Vilar e um seu amigo - triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora, intensa e original: no fundo apenas falsa e obscena.