Capítulo 26: CAPÍTULO XXIV - Em que se prossegue a aventura da Serra Morena.
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escrevi! que mimosas e honestas respostas não tive! quantas canções não compus, e quantos namorados versos, em que a alma exprimia os seus sentimentos, pintava o aceso dos seus desejos, atiçava as suas memórias e ia cevando cada vez mais a própria vontade! Chegando ao último apuro, e não podendo já coibir em mim a impaciência de a ver, resolvi pôr por obra e acabar de uma vez o que me pareceu mais próprio para chegar ao desejado e merecido prêmio; o tudo era pedi-la decididamente ao pai por legítima esposa; e assim o fiz. Respondeu-me ele que me agradecia a boa vontade que eu mostrava de honrar a sua casa, escolhendo nela uma joia para meu lustre; que porém, sendo meu pai vivo, a ele tocava apresentar aquela proposta, porque, a não ser muito por sua vontade, e a seu gosto, não era Lucinda mulher para se tomar ou dar-se a furto. Agradeci-lhe a resolução, que me pareceu muito arrazoada, e que a meu pai quadraria, assim que lha eu declarasse. Ato contínuo passei a abrir-me com meu pai. Ao entrar no seu aposento, encontrei-o com uma carta aberta na mão; antes que lhe eu dissesse palavra, entregou-ma e me disse: “Por essa carta verás, Cardênio, a vontade com que está o Duque Ricardo de te fazer mercê.” Este Duque Ricardo, como já vós outros, senhores, deveis saber, é um grande de Espanha que tem o melhor dos seus domínios nesta Andaluzia. Li a carta, que tão encarecida vinha, que a mim mesmo me pareceu mal deixar meu pai de cumprir o que nela se pedia, que vinha a ser o mandar-me logo para onde ele estava, pois me queria para companheiro, e não criado, de seu filho morgado, e que ele tomava a sua conta o pôr-me em estado correspondente à estimação em que me tinha. Li a carta, e emudeci; e muito mais quando a meu pai ouvi estas palavras: “Daqui a dois dias partirás, Cardênio, a fazer a vontade ao Duque; e dá graças a Deus, que assim começa a abrir-te caminho por onde alcances o que eu sei que mereces.
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