Dom Quixote de La Mancha – Livro Segundo - Cap. 32: CAPÍTULO XXXII - Da resposta que deu D. Quixote ao seu repreensor, com outros graves e graciosos sucessos. Pág. 260 / 593
Finalmente, D. Quixote sossegou, acabou-se o jantar e, ao levantar-se a mesa, chegaram quatro donzelas: uma com uma bacia de prata, outra com um gomil de prata também, a terceira com riquíssimas e alvíssimas toalhas ao ombro, e a quarta com os braços nus até ao meio e um sabonete napolitano nas suas brancas mãos. Aproximou-se a primeira e pôs a bacia debaixo do queixo de D. Quixote, o qual, sem dizer palavra, admirado de semelhante cerimônia, imaginou que devia de ser uso daquela terra, em vez de lavar as mãos, lavar os queixos; e por isso, estendeu o seu, tanto quanto pôde, e no mesmo instante começou o gomil a chover água, e a última das donzelas ensaboava a cara de D. Quixote, muito depressa, levantando flocos de neve, porque não era menos branca do que a neve a espuma que enchia o queixo, o rosto e os olhos do obediente cavaleiro, tanto que teve de os fechar à força. O duque e a duquesa, que de nada disto eram sabedores, estavam esperando para ver em que iria parar tão extraordinário lavatório. A donzela barbeira, quando o apanhou com um palmo de sabão, fingiu que se lhe acabara a água, e mandou à do gomil que fosse por ela, que o senhor D. Quixote esperaria. Assim o fez, e ficou D. Quixote na mais estranha e ridícula figura que se pode imaginar. Miravam-no todos os que estavam presentes que eram muitos; e, como o viam com meia vara de pescoço, mais do que medianamente trigueiro, os olhos fechados e a cara cheia de sabonete, só por grande milagre e discrição puderam disfarçar o riso; as donzelas da burla estavam de olhos baixos, sem se atrever a encarar seus amos; a estes retouçava-lhes no corpo a cólera e o riso, e não sabiam se haviam de castigar as donzelas pela sua ousadia, se premiá-las pelo divertimento que lhes tinham dado.