Os Maias - Cap. 4: Capítulo 4 Pág. 91 / 630

Chega julho, e aparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diftéricas... A mamã salta imediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minha irmã concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que não gosta de me ver na quinta, diz que é possível que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quase de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruíne, mas que não esteja ali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

- E a epidemia...

- Desapareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.

Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de caxemira; e o cabelo que ele trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó de arroz - e

Carlos deixou enfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos lábios:

- Ega, que extraordinário casaco!

Por aquele sol macio e morno de um fim de outono português, o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça, uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tísico uma rica e fofa espessura de peles de marta.

- É uma boa peliça, hein? disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exibindo a opulência do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Benefícios da epidemia.

- Como podes tu suportar isso?

- É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.

Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete.

- E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto esplêndido!

Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das obras do laboratório...





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