A República - Cap. 1: Capítulo 1 Pág. 11 / 290

— Portanto, meu amigo, a justiça não é nada muito importante, se a sua aplicação se estende apenas a coisas inúteis. Mas analisemos isto: o homem mais hábil a desferir golpes, num combate, um pugilato ou qualquer outra luta, mas é também o mais hábil a evitá-los?

— Sem dúvida.

— E o que é hábil a preservar-se de uma doença não é também o mal hábil a transmiti-la em segredo?

— Assim parece.

— Mas não é bom guarda de um exército aquele que furta aos inimigos os seus segredos, os seus projectos e tudo o que lhes diz respeito?

— Sem dúvida.

— Portanto, o hábil guarda de uma coisa é também o ladrão hábil.

— Aparentemente.

— Portanto, se o justo é hábil a guardar dinheiro, é também hábil a roubá-lo.

— É esse, pelo menos — disse ele —, o sentido do raciocínio.

— Deste modo, o justo aparece-nos como uma espécie de ladrão e creio que aprendeste isso em Homero. Com efeito, este poeta exalta o avó materno de Ulisses, Autólico, e diz que ultrapassava todos os humanos no hábito do roubo e do perjúrio. Por conseguinte, parece que a justiça, na tua opinião, na de Homero e Simónides, é uma certa arte de furtar, mas a favor dos amigos e em detrimento dos inimigos. Não era assim que o entendias?

— Não, por Zeus! — respondeu ele. — Não sei o que dizia; contudo, continua a parecer-me que a justiça consiste em ser útil aos amigos e prejudicial aos inimigos.

— Mas a quem chamas amigos: aos que parecem honestos a toda a gente ou aos que o são, embora não o pareçam, e de igual modo para os inimigos?

— É natural — disse ele — amar os que consideramos honestos e odiar os que consideramos maus.





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