A República - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 80 / 290

- Parece-me, Adimanto, que a natureza humana está dividida em partes ainda mais pequenas, de modo que o homem não pode imitar bem várias coisas ou fazer as coisas que a imitação reproduz.

- Nada mais verdadeiro - disse ele.

- Portanto, se mantivermos o nosso primeiro princípio, a saber, que os nossos guardas, dispensados de todos os outros ofícios, devem ser os artesãos dedicados da independência da cidade e desprezar o que não conduz a isso, é preciso que não façam nem imitem qualquer outra coisa; se imitarem, que sejam as qualidades que lhes convém adquirir desde a infância: a coragem, a temperança, a santidade, a liberalidade e as outras virtudes da mesma natureza; mas a baixeza não devem praticá-la nem saber habilmente imitá-la, assim como nenhum dos outros vícios, com receio de que da imitação recolham o fruto da realidade. Ou não notaste que a imitação, quando se teima em cultivá-la desde a infância, se fixa nos hábitos e torna-se uma segunda natureza para o corpo, a voz e o espírito?

- Com certeza - respondeu.

- Portanto, não consentiremos - continuei - que aqueles de quem pretendemos ocupar-nos, e que devem tornar-se homens virtuosos, imitem, eles, que são homens, uma mulher, nova ou velha, injuriando-lhe o marido, rivalizando com os deuses e vangloriando-se da sua felicidade, ou mergulhando na infelicidade, no luto e nas lágrimas; com mais forte razão, não admitiremos que a imitem doente, amorosa ou com dores de parto.

- É evidente que não - disse ele.

- Nem que imitem os escravos, machos ou fêmeas, nas suas acções servis.

-Também não.

- Nem, julgo eu, os homens maus e cobardes que fazem o contrário do que dizíamos há pouco, que se rebaixam e zombam uns dos outros e têm conversas indecentes, quer na embriaguez, quer a sangue-frio; nem todos os erros de que se tornam culpadas semelhantes pessoas, em actos e palavras, para consigo mesmas e para com os outros. Penso que também não se deve habituá-los a imitar a linguagem e o comportamento dos loucos; com efeito, é necessário conhecer os loucos e os maus, homens e mulheres, mas não fazer nada do que eles fazem nem imitá-los.

- Isso é verdade - concordou.

- Como, então? - prossegui. - Imitarão os ferreiros, os outros artesãos, os remadores que fazem avançar as trirremes, os mestres de tripulação e tudo o que se refere a estes ofícios?

- E como - replicou -lho permitiríamos, dado que nem sequer terão o direito de se ocupar de qualquer um desses ofícios?





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