O Bobo - Cap. 11: XI - O subterrãneo Pág. 105 / 191

Apenas, lacerado dos açoutes e manando sangue das costas, escapara das mãos dos cavalariços e pajens, Dom Bibas fora esconder na espécie de covil, em que vivia, a sua dor e vergonha. Era um pesadelo, um delírio aquilo por que passara: era monstruoso e incrível. Posto às varas como um servo, ele homem livre; ele tão mimoso de seu bom senhor D. Henrique! As lágrimas correram abundantes por essas faces habituadas de longos anos unicamente às contracções das visagens truanescas. As lágrimas, porém, nem o consolaram, nem bastavam à sua desesperação. Depois de se rolar pelo chão mordendo os punhos cerrados, o bufão assentou-se a um canto, como o lobo cerval colhido no fojo, cansado de lidar em vão por salvar-se. Todo o fel, que o rir forçado de tanto tempo lhe fizera, por assim dizer, absorver e calcar no coração, achou enfim um resfolgadouro no ódio implacável que a dolorosa e terrível afronta recebida lhe gerara lá dentro. O pensamento da vingança alcançara o que não haviam obtido as lágrimas: Dom Bibas sentia agora que ainda havia para ele consolação e esperança.

Mas como vingar-se? Ignorava-o. Juraria contudo que Belzebu lhe dizia ao ouvido: «Pensa bem; que hás-de atinar com o caminho que buscas.» Quem deixou de achar meios neste mundo para satisfazer paixões más?

Maquinalmente Dom Bibas despira as roupas variegadas de folião, e vestindo um simples trajo de escudeiro, galgara as escadas do paço. Na confusão que reinava na sala do banquete ninguém o conheceu. Girando de uma para outra parte ele cogitava no modo por que poderia obedecer ao pensamento irresistível que o agitava. A esperança de que a festa terminasse, segundo o costume, por completa embriaguez em que o sangue corresse, e que talvez no meio da desordem alcançasse aproximar-se do conde, lhe sorriu um momento. Então pensava lá consigo como uma boa punhalada pagaria a dívida do truão ao nobre senhor! Mas arriscava-se a errar o golpe, e ele precisava da vida até obter completa vingança. Também pela cabeça desvairada do chocarreiro passou a ideia de envenenar a taça ou copo por onde Fernando Peres havia de beber.





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