A Década Perdida - Cap. 4: A ABSOLVIÇÃO Pág. 162 / 182

De fora, Miller podia ouvir os pássaros esganiçados e os movimentos de asas da capoeira e, como acompanhamento, o ruído grave e crescente do comboio das seis e um quarto para Montaria e para a costa verde, mais além. Então, enquanto a água fria lhe pingava da esponja para as mãos, levantou subitamente a cabeça; ouvira um som furtivo vindo de baixo, da cozinha.

Secou à pressa a navalha de barba, passou por sobre os ombros os suspensórios pendentes e pôs-se à escuta. Alguém caminhava na cozinha e compreendeu pelo pisar que não era a mulher. Com a boca ligeiramente entreaberta desceu rapidamente as escadas e abriu a porta da cozinha.

Junto do lava-louça, com uma mão na torneira que ainda pingava e a outra agarrando um copo cheio de água, estava o filho. Os olhos do rapaz, ainda pesados de sono, encontraram os do pai com uma beleza assustada e reprovadora. Estava descalço e tinha o pijama enrolado até aos joelhos e nas mangas.

Por um momento ambos ficaram imóveis; as sobrancelhas de Carl Miller desceram e as do filho subiram, como se estivessem a medir os extremos de emoção que os enchia. Então, os pêlos do bigode do pai desceram sinistramente até lhe taparem a boca, e ele lançou um olhar rápido à volta para ver se alguma coisa estava fora do lugar.

A cozinha estava enfeitada pela luz do sol que batia nas panelas e tornava as tábuas macias do soalho e da mesa amarelas e imaculadas. Era o centro da casa, onde o fogo ardia e os tachos encaixavam uns nos outros como brinquedos, e o vapor de água assobiava o dia inteiro em ténues sons de pastel. Nada estava desarrumado, ninguém tinha tocado em nada... excepto a torneira onde ainda se formavam gotas de água que pingavam como uma chama branca para dentro do lava-louças.





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