A República - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 48 / 290

E citar-se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo voluntariamente, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo o homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça e pensa-o com razão, segundo os partidários desta doutrina. Com efeito, se alguém recebesse a licença de que falei e não consentissem nunca em cometer a injustiça nem em tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que tivessem conhecimento da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-la-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de virem a ser vítimas da injustiça. Eis o que tinha a dizer sobre este ponto.

»Agora, para fazermos um juízo da vida dos dois homens de que falamos, oponhamos o mais justo ao mais injusto e estaremos aptos a julgá-los bem; de outro modo não o conseguiríamos. Mas como estabelecer esta oposição? Assim: não tiremos nada ao injusto da sua injustiça nem ao justo da sua justiça, mas consideremo-los perfeitos, cada um no seu género de vida. Em primeiro lugar, que o injusto actue como os artesãos hábeis como o piloto consumado, ou o médico, distingue na sua arte o impossível do possível, empreende isto e abandona aquilo; se se engana em algum ponto, é capaz de corrigir o erro -, tal como o injusto se dissimula habilmente quando empreende alguma má acção, se quer ser superior na injustiça, Daquele que se deixa apanhar deve-se fazer pouco caso, porque a extrema injustiça consiste em parecer justo não o sendo. Portanto, deve-se conceder ao homem perfeitamente injusto a perfeita injustiça, não suprimir nada e admitir que, cometendo os actos mais injustos, retire deles uma maior reputação de justiça; que, quando se engana em alguma coisa, é capaz de corrigir o erro, de falar com eloquência para se justificar se um dos seus crimes for denunciado e usar de violência nos casos em que a violência for necessária, ajudado pela sua coragem, o seu vigor e os seus recursos em amigos e dinheiro. Em face de tal personagem coloquemos o justo, homem simples e generoso, que quer, segundo Ésquilo, não parecer, mas ser bom. Tiremos-lhe esta aparência. Se, com efeito, parecer justo, terá, como tal, honras e recompensas; saber-se-á então se é pela justiça ou pelas honras e as recompensas que é assim.





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