A República - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 70 / 290

- Seria ridículo - disse ele.

- Não há então em Deus um poeta mentiroso?

- Não me parece.

- Será então o receio dos seus inimigos que o leva a mentir?

- É pouco provável.

- O furor ou o desatino dos seus amigos?

- Mas - observou - Deus não tem amigos entre os furiosos e os insensatos.

- Portanto, não há razão para que Deus minta?

- Não há.

- Por conseguinte, a natureza demoníaca e divina é inteiramente estranha à mentira.

- Inteiramente - disse ele.

- E Deus é absolutamente simples e verdadeiro, em actos e palavras; não muda ele mesmo de forma e não engana os outros, nem por fantasmas nem por discursos nem pelo envio de sinais, no estado de vigília ou em sonho.

- Assim o creio - confessou -, depois do que acabas de dizer.

- Reconheces então - continuei - que é esta a segunda regra que se deve seguir nos discursos e nas composições poéticas sobre os deuses: não são mágicos que mudam de forma e não nos confundem com mentiras, por palavras ou actos.

- Reconheço.

- Assim, embora louvando muitas coisas em Homero, não louvaremos a passagem em que diz que Zeus enviou um sonho a Agamémnon, nem a passagem de Ésquilo em que Tétis refere que Apelo, que cantava nas suas núpcias, insistiu na sua felicidade de mãe cujos filhos seriam

isentos de doença e favorecidos por uma longa existência. - Disse tudo isto e anunciou-me divinos encontros

em seu canto, enchendo o meu coração de alegria. E eu esperava que não fosse mentirosa

a boca sagrada de Febo de onde brotavam os oráculos: mas ele, o cantor, o conviva desse festim

e o autor destes louvores, ele é o assassino

do meu filho ...

Quando um poeta falar assim dos deuses, irritar-nos-emos, não faremos coro com ele e não permitiremos que os mestres se sirvam das suas fábulas para a educação da juventude, se quisermos que os nossos guardas sejam piedosos e divinos, no maior grau em que os homens podem ser.

- Estou de acordo contigo quanto a essas regras - disse ele - e usá-las-ei como leis.





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