Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 7: TERCEIRA PARTE – ESTÔMAGO
CAPÍTULO I - DE COMO ME CASEI Pág. 155 / 156

sociedade que lhe rasgasse de novo as cicatrizes e instilasse nelas o veneno que transpira depois em vociferações eloquentes na comédia, no poema e no romance! Ao menos, aquele brilhante astro, afogado no charco do estômago, irradiaria como tantos outros infelizes em volta da região intangível da felicidade, e o mundo, que o crucificara, seria depois o primeiro a apregoá-lo grande.

Saí de Soutelo no fim do Verão.

Silvestre acompanhou-me aos banhos da Póvoa e já vinha com todos os sintomas de caquexia, resultante da imobilidade, e cansaço das molas digestivas. Retirou-se para a província logo que os primeiros banhos e as primeiras perdas ao jogo lhe molestaram o corpo e o espírito. De lá me escreveu, contando os progressos da cabeça da doença e prognosticando o seu próximo fim. Nesta carta prometia o meu amigo legar-me os seus papéis, com plena autorização de divulgá-los, se eu visse que podiam ser de proveito para a iniciação da mocidade. À maneira do moralista Duclos, dizia ele: “J'ai vécu, je voudrais être utile à ceux qui ont à vivre”.

Poucos meses depois recebi da mão de um almocreve uma chapeleira de couro repleta de embrulhos, que me enviava a Sra. D. Tomásia, e uma carta do sargento-mor asseverando-me que o seu genro morrera como um passarinho - a morte do justo; com a diferença que não ajustou contas com os credores, para quem a salvação do meu amigo é coisa muito duvidosa...

Na carta do saudoso sogro vinha o seguinte soneto, que o moribundo fizera, à imitação dos distintos génios de ambos os sexos, que sonetearam à hora da morte, tais como a poetisa D. Catarina Balsemão e Bocage.

O soneto reza assim:

Abri meu coração às mil quimeras;

Encheram-mo de fel, e tédio, e alma,

Tive, em paga do amor, riso de infama.





Os capítulos deste livro