Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 1: PREÂMBULO Pág. 4 / 156

O sagui é muito menos estúpido e mais modesto. Come, bebe, dá cabriolas, faz caretas ao mau tempo, coça-se ao sol, retouça-se à sombra, vive, e acaba feliz, porque se não receia de vir a ser homem.

A estolidez do homem! Diz ele empapado de vaidade tola: ‘Deus tem os olhos em mim!' Que importância! Deus tem os olhos nele! Se assim fosse, havia de ver bonitas coisas o criador do homem que mata o seu irmão!

Os olhos nele, para quê? Para envergonhar-se a cada hora da sua obra!...

É a blasfémia em todo o seu asco!

Rebalsa-te em sangue, miserável vampiro!

Emperla os teus cabelos, meretriz, que deixas morrer a tua mãe de fome! Mãe infame, come aí em toalhas de Flandres o preço da desonra da tua filha! Ostentai-vos, vermes, aos olhos de Deus, que estão pasmos em vós!... ”

Ainda bem que o fragmento findava nisto, senão eu teria a imprudência de to dar inteiro nesta cópia, em que senti as repugnâncias do pulso. Vê tu que missionário era aquele Silvestre! Que ceifa de almas fez o empreiteiro das trevas inferiores naqueles anos!

Eu de mim pude salvar-me, estudando, como sabes, a teologia a fundo. Tu também te salvaste, penso eu, justamente porque não sabias coisa nenhuma de teologia e acreditavas na religião dos teus pais, visto que a base fundamental da tua crença era a caridade. Acertou de ser isto num tempo em que tu pedias esmola para as freiras de Lorvão e eu, também contigo, pedia esmola no Teatro de S. João, para o poeta Bingre.

Recorda-te, Novais; mas não chores. Faz como eu: ergue o peito de sobre a banca do trabalho e sacode a lájea que te está pesando nas costas... Olha a vaidade! Teremos nós sepultura com lájea!? Conta com um comarozinho de terra, e umas papoilas na Primavera, e uma tábua preta com um número branco.





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