Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 3: CAPÍTULO II - A MULHER QUE O MUNDO RESPEITA Pág. 44 / 156

Soou meia-noite.

A folhagem dos álamos rumorejava nas asas das brisas. A Lua, coada por entre os dosséis de trepadeiras, mosqueava a relva dos pradozinhos ajardinados de Paula. Lá do interior vinha uma toada suave de fonte que mais parecia um gemer de saudade.

A intervalos, as lufadas da viração rolavam as folhas secas, e a cigarra e o grilo pareciam calar-se para ouvi-las.

Este ouvir e sentir refrigerou-me a febre da alma. Contemplei-me nas minhas ferozes intenções, no centro de um espetáculo tão majestoso de poesia e inspirador de pensamentos afetuosos. A razão, resgatada momentaneamente pelos bons instintos e moralizadora educação que os meus pais me deram, sopesou os ímpetos do coração vingativo. Desceu o anjo da paz à minha alma, e renasceu-me lá a esperança de encontrar alguma vez a mulher digna de mim, cuja posse me não custasse o sangue do meu rosto.

Ergui-me no intuito de abandonar para sempre à vingança da providência a mulher fementida e o vitorioso rival; ao dar, porém, os primeiros passos, relanceei os olhos ao jardim e vi um vulto vestido de branco, branco do mármore das estátuas tumulares. Estaquei, e o vulto caminhou direito à grade. “É ela”, disse o meu coração em ânsias. “Que veio aqui fazer Paula? Enganar-se-ia ela comigo?”

Retirei-me a um lado para ficar encoberto pelo muro. O vulto acelerou o passo, abriu subtilmente a grade, meteu fora a cabeça e murmurou:

- Já estão a dormir todos: podes entrar. Fiz-te esperar muito tempo?

Fiquei entre o palerma e o estupefacto.

- Anda, Caetano - disse ela -, que estou a arrefecer! Tu não te mexes? Estás amuado?

- Vossa Mercê engana-se - disse eu, quando conheci a cozinheira ao clarão da lua.

Mal proferidas estas palavras, o vulto deu um grito de surpresa e fugiu, deixando aberta a grade.





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