Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 5: SEGUNDA PARTE – CABEÇA
CAPÍTULO I – JORNALISTA Pág. 84 / 156

Comia-se muito.

Posto que os dissabores fundos da minha vida passada me fizessem ver com tédio os regalos da sociedade, fui obrigado pela minha posição nas letras a comparecer nos focos da civilização. Escrevi alguns folhetins, historiando os prazeres fictícios daquelas noitadas, e mediante eles granjeei a estima das donas da casa; e quer-me parecer que, se eu tivesse coração naquela época, as virtudes da cidade da virgem seriam hoje uma coisa muito equívoca.

Como detesto a fatuidade, inibo-me de contar as demonstrações mais ou menos recatadas que recebi de singular afeto.

Não intento desdourar as demais senhoras de Portugal dizendo que as há no Porto que se avantajam em formosura a quantas conheço, exceto a leitora.

A mulher do Porto, como ela era há quinze anos, estava por adelgaçar, gozava-se de cores ricas de bom sangue; era redonda e brunida em todas as suas formas; o ofegar do seu peito comprimido pelas barbas do colete era como a oscilação de uma cratera que vai romper à superfície; dardejava com os olhos; ria francamente com os lábios inteiros; deixava ver o esmalte dos dentes e o rosado das gengivas; meneava os braços com toda a pujança dos seus músculos reforçados; pisava com gentil desenvoltura; dizia com toda a lisura as suas primeiras impressões; ria-se com os chistes dos galãs que tinham graça; ouvia sentimentalmente as tristezas dos céticos; doidejava nas vertigens da valsa; bebia o seu cálice de Porto; comia com angélico despejo uma dezena de sanduíches; tornava para as danças com redobrado ardor; e, ao repontar da manhã, quando as flores da cabeça lhe caiam murchas e as trancinhas da madeixa se empastavam com o suor da testa, a mulher do Porto era ainda formosa, mais formosa ainda pelo cansaço, a disputar lindeza à aurora, que nascera para lhe disputar a beleza.





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