Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 6: CAPÍTULO II - PÁGINAS SÉRIAS DA MINHA VIDA Pág. 92 / 156

Não louvo semelhante desafogo de despeito, nem encareço o quilate da poesia. Reza assim a coisa, depois de ter resumido em estiradas oitavas o epitome da sua vida e a resolução de se casar:

Josino amigo meu, velho incontrito,

Há trinta anos conheço em cata duma,

Que tenha coração, e algum saquito

Daquilo com que a vida mais se arruma.

É velho o meu Josino; mas bonito,

E bem conservadinho; ainda se apruma,

Quando vê na janela da vizinha

A travessa criada da cozinha.

Nos bailes, faz-me inveja o seu meneio,

E os trejeitos, que faz coa perna fina,

E o garbo, que lhe empresta o bom recheio

Do túmido algodão com que fascina.

Do cume de gravata, em doce enleio,

Contempla as graças da gentil menina,

Já neta de uma avó, que foi deveras

Namoro de Josino em priscas eras.

Já tem um pouco os olhos desvidrados;

Porém, não sei que graça tem, se os pisca!

Eu, se fosse mulher... ai!, meus pecados!,

Caia neste anzol de antiga isca.

Há homens tão fatais e endiabrados,

Que mal sabe a mulher ao que se arrisca,

Se palestra lhes dá! Ai!, pobrezinha!

É a história do sapo e da doninha!

Mas que importa o poder que tens no peito

Das cândidas donzelas, velho audaz!

Tu consegues fazer com manha e jeito

O que a natureza pérfida desfaz.

Já consta por aí que tu és feito

De pródigo algodão, múmia falaz!

Suspeita-se também ser de algodão

A coisa a que tu chamas coração.

Josino, ainda assim, já mais fraqueia;

Ousa dar-se o valor de uma antigalha,

Camafeu de Herculanum ou de Pompeia,

Que no mundo não tem mulher que o valha.

Isto diz muita vez, à boca cheia,

À criada Jacinta, quando ralha,

Porque a pobre, mulher de sã lisura,

Se ri quando ele encaixa a dentadura.

Josino tem caleche e tem cavalo,

Que aos triunfos d'amor lhe presta ajuda.





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