A República - Cap. 10: Capítulo 10 Pág. 280 / 290

- O argumento que acabo de apresentar e outros obrigam-nos a concluir que a alma é imortal. Mas, para conhecer bem a sua natureza, devemos considerá-la, como estamos a fazer, no estado de degradação em que a põem a sua união com o corpo e outras misérias; é preciso contemplá-la atentamente com os olhos do espírito, tal como ela é quando é pura. Então vê-la-emos infinitamente mais bela e distinguiremos mais claramente a justiça e a injustiça e todas as coisas de que acabamos de falar. O que dissemos da alma é verdadeiro em relação ao seu estado presente. Por isso, vimo-la no estado em que poderíamos ver Gláucon o marinheiro: teríamos muita dificuldade em reconhecer a sua natureza primitiva, porque as antigas partes do seu corpo foram umas partidas outras gastas e totalmente desfiguradas pelas águas e formaram-se partes novas, compostas de conchas, algas e seixos. Também a alma se nos apresenta desfigurada por mil males. Mas eis, Gláucon, o que se deve encarar nela.

- O quê? - perguntou.

- O seu amor da verdade. Temos de considerar que objectos ela atinge, que companhias procura, devido ao seu parentesco com o divino, o imortal e o eterno; o que se tornaria se se entregasse totalmente a essa procura, se, levantada por um nobre impulso, surgisse do mar em que agora se encontra e sacudisse as pedras e as conches que presentemente a cobrem, porque se alimenta de terra-crosta espessa e rude de areia e rocha que se desenvolveu à sua superfície nos festins ditos bem-aventurados. É então que se poderia ver a sua verdadeira natureza, se é multiforme ou uniforme e como é constituída. Quanto ao presente, julgo que descrevemos perfeitamente as afecções que experimenta e as formas que tome no decurso da sua existência.

- Com toda a certeza - disse ele.

- Ora - continuei -, não afastámos da discussão todas as considerações estranhas, evitando louvar a justiça por causa das recompensas ou da reputação que proporciona, como fizeram, dizíeis vós, Hesíodo e Homero? E não descobrimos que ela é o bem supremo da alma considerada em si mesma e que esta deve realizar o que é justo, quer possua ou não o anel de Giges e, pare além desse anel, o elmo de Hades?

- É inteiramente verdade - respondeu.





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