A República - Cap. 10: Capítulo 10 Pág. 288 / 290

Quando acabou de pronunciar estas palavras, disse Er, aquele a quem coubera o primeiro destino escolheu sem hesitar a maior tirania e, arrebatado pela loucura e a avidez, pegou nela sem atender suficientemente ao que fazia; e não viu que o destino implicava que o seu possuidor comeria os próprios filhos e cometeria outros horrores; mas, depois de cair em si, bateu no peito e deplorou a sua escolha, esquecendo os avisos do hierofante; é que, em vez de se acusar dos seus males, voltava-se contra a sorte, os demónios, tudo, e não contra si próprio. Era um dos que vinham do céu: tinha passado a vida anterior numa cidade bem policiada e aprendido a virtude por hábito e sem filosofia. E pode-se afirmar que, entre as almas assim surpreendidas, as que vinham do céu não eram as menos numerosas, porque não tinham sido postas à prova pelos sofrimentos; pelo contrário, a maior parte das que chegavam da terra, tendo sofrido e visto sofrer as outras, não se precipitavam na escolha. Daí que, assim como dos acasos do sorteio, a maior parte das almas trocassem um bom destino por um mau e vice-versa, E assim, se sempre que um homem nasce para a vida terrestre se dedicasse salutarmente à filosofia e o destino não o chamasse a escolher entre os últimos, parece, segundo o que se conta do além, que não só seria feliz neste mundo, mas que a sua viagem deste mundo para o outro e o regresso se fariam não pelo rude caminho subterrâneo, mas pela via unida do céu.

»O espectáculo das almas que escolhem a sua condição, acrescentava Er, valia a pena ser visto, porque era digno de dó, ridículo e estranho. Com efeito, era segundo os hábitos da vida anterior que, a maioria das vezes, faziam a sua escolha. Tinha visto, dizia ele, a alma que foi um dia a de Orfeu escolher a vida de um cisne, porque, por ódio ao sexo que lhe dera a morte, não queria nascer de uma mulher; tinha visto a alma de Támiras escolher a vida de um rouxinol, um cisne trocar a sua condição pela do homem e outros animais canoros fazerem o mesmo. A alma chamada em vigésimo lugar a escolher optou pela vida de um leão: era a de Ájax, filho de Télamon, que não queria voltar a nascer no estado de homem, não tendo esquecido o julgamento das armas. A seguinte era a alma de Agamémnon; tendo também aversão pelo género humano, por causa das desgraças passadas, trocou a sua condição pela de uma águia.





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