A República - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 47 / 290

»Agora, que aqueles que a praticam actuem por impotência para cometerem a injustiça é o que sentiremos particularmente bem se pusermos a hipótese seguinte. Demos licença ao justo e ao injusto para fazerem o que querem; sigamo-los e vejamos, um e outro, onde os leva o desejo. Apanharemos o justo em flagrante delito de perseguir o mesmo objectivo que o injusto, arrastado pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é o que procura, mas que, por lei e por força, é reconduzido ao respeito da igualdade. A licença de que falo seria sobretudo significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se diz, o antepassado de Giges, o Lídio. Este homem era pastor ao serviço do rei que governava então a Lídia. Um dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um sismo, o solo fendeu-se e formou-se uma larga abertura perto do local onde o seu rebanho pastava. Cheio de espanto, desceu e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas portas; tendo-se debruçado para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Ora, com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar o rei do estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, voltou por acaso o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tornou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se tivesse partido. Espantado, voltou a apalpar o anel, voltou o engaste para fora e tornou-se visível. Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: voltando o engaste para dentro, tornava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se ao número dos mensageiros que iam ter com o rei. Chegado ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de índole assaz diamantina para perseverar na justiça e para ter a coragem de não tocar no bem de outrem, dado que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, quebrar os ferros a outros e fazer o que lhe apetecesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o distinguiria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim.





Os capítulos deste livro