A República - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 53 / 290

Mas no Hades», dir-se-á, «sofreremos a pena das injustiças cometidas neste mundo, nós ou os filhos dos nossos filhos.» Mas, meu amigo, responderá o homem que raciocina, os mistérios podem muito, assim como os deuses libertadores, a acreditar nas grandes cidades e nos filhos dos deuses, poetas e profetas, que nos revelam estas verdades.

»Porque havemos de continuar a preferir a justiça à extrema injustiça, que, se a praticarmos com fingida honestidade, nos permitirá triunfar junto dos deuses e junto dos homens, durante a vida e depois da morte, como o afirmam a maior parte das autoridades e as mais eminentes? Depois do que foi dito, será ainda possível, Sócrates, consentir em honrar a justiça quando se dispõe de alguma superioridade, de alma ou de corpo, de riquezas ou de nascimento, e não rir ao ouvi-la louvar? Deste modo, se alguém está apto a provar que mentimos e se dá suficientemente conta de que a justiça é o melhor dos bens, mostra-se cheio de indulgência e não se enfurece contra os homens injustos; sabe que, com excepção daqueles que, porque são de natureza divina, sentem inversão pela injustiça e daqueles que se abstêm porque receberam as luzes da ciência, ninguém é justo voluntariamente, mas que é a cobardia, a idade ou qualquer outra fraqueza que leva a censurar a injustiça, quando se é incapaz de a cometer. A prova é evidente: com efeito, entre as pessoas que estão neste caso, o primeiro que recebe o poder de ser injusto é o primeiro a usá-lo, na medida das suas possibilidades. E tudo isto não tem outra causa senão a que nos comprometeu, ao meu irmão e a mim, nesta discussão, Sócrates, para te dizermos: «Ó admirável amigo, entre vós todos que pretendeis ser os defensores da justiça, a começar pelos heróis dos primeiros tempos cujos discursos chegaram até nós, ainda ninguém censurou a injustiça nem louvou a justiça, a não ser pela reputação, as honras e as recompensas que a elas estão ligadas; quanto ao que são uma e outra, ocultadas aos deuses e aos homens, pela sua própria força, na alma que as possui, ninguém, quer em verso, quer em prosa, jamais demonstrou suficientemente que uma é o maior dos males da alma e a outra, a justiça, o seu maior bem. Com efeito, se nos falassem todos assim desde o princípio e se, desde a infância, nos persuadissem desta verdade, não teríamos de nos defender mutuamente da injustiça, mas cada um de nós seria o melhor guarda de si mesmo, com medo, se fosse injusto, de coabitar com o maior dos males.»





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