Histórias Extraordinárias - Cap. 4: O GATO DO BRASIL Pág. 106 / 136

Depois, sem ninguém saber, tinha descido, atraíra-me a este antro, abandonara-me ali. A sua justificação seria das mais simples: diria que me tinha deixado no bilhar, a acabar o meu charuto; que eu tivera a ideia súbita de sair para deitar uma última olhadela ao gato; que eu não reparara, ao penetrar na sala, que a jaula estava aberta; e que fora apanhado... Como produzir contra ele a prova do crime? Talvez chegassem a suspeitar, mas nunca o acusariam!

Com que lentidão se escoaram estas duas terríveis horas!

Uma vez ouvi um ruído abafado, como se fosse um ralador, e supus que o gato estivesse a alisar o pêlo. Depois, por diversas vezes, as luzes esverdeadas dos seus olhos apareceram-me na escuridão, mas sem se fixarem em mim; e esperei cada vez mais que ele esquecesse ou ignorasse a minha presença. As janelas filtraram um pálido raio de luz; ao princípio, mal as entrevi, como dois quadrados cinzentos na parede escura; depois, de cinzentas, tornaram-se brancas; e pude ver outra vez o meu terrível companheiro. Também ele, infelizmente, podia ver-me!

Compreendi imediatamente que manifestava a meu respeito disposições muito mais perigosas e agressivas. A frescura do raiar do dia irritava-o; além disso, começava a sofrer de fome. Com um grunhido contínuo, percorria com grandes passadas o lado da sala oposto àquele onde eu me tinha refugiado; os bigodes eriçavam-se-lhe devido à cólera; fustigava-se com a cauda; todas as vezes que se virava, quando chegava aos cantos, os seus olhos de fogo erguiam-se para mim, carregados de ameaça. Queria devorar-me. E apesar de tudo, nesse preciso momento, eu surpreendia-me a admirar, naquele ser diabólico, a sua graça sinuosa, a sua flexibilidade, o brilho maravilhoso da sua pelugem, o escarlate vivo e palpitante da sua língua no negro lustroso do focinho.





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