Histórias Extraordinárias - Cap. 4: O GATO DO BRASIL Pág. 109 / 136

Depois, gradualmente, o meu pensamento ficou à deriva em vagos e estranhos sonhos, nos quais reapareciam sempre aquele focinho preto e aquela língua vermelha; e afundei-me no nirvana do delírio, refúgio bendito após uma provação demasiado cruel.

Voltei a mim, ao cabo de duas horas, devido a um ruído seco, o mesmo ruído de metal que marcara o início da minha terrível aventura. Uma lingueta de fechadura movia-se. Sem pavor, no estado de lucidez imperfeita em que estava mergulhado, adivinhei que o gordo rosto do meu primo espreitava através da abertura da porta. O que via era de molde a deixá-lo estupefacto: o gato estiraçado no chão; quanto a mim, estendido na jaula, deitado de costas, em mangas de camisa, tinha as calças despedaçadas e estava banhado no meu próprio sangue. O sol da manhã mostrava-me a consternação pintada na sua cara. Contemplou-me demoradamente. Depois, fechando a porta atrás de si, acercou-se da jaula para se certificar de que eu tinha cessado de viver.

O que aconteceu não poderia empreender contar. Não me encontrava nas condições requeridas para assistir aos acontecimentos como testemunha e como cronista. Sei só que, de súbito, deixando de fitar-me, ele enfrentou o animal.

- Meu bom velho Tommy! - exclamou. - Meu bom velho Tommy!

E recuava para a grade. Depois, rugindo:

- Deita-te aí, estúpido animal! Deita-te aí, senhor! Então não reconhece o seu amo?

Uma recordação emergiu na desordem do meu cérebro.

Lembrei-me do que King me dissera acerca do gosto do sangue que invadira subitamente o animal, como uma raiva. O meu sangue havia desencadeado esta raiva; e o de King ia pagar o preço do meu.

- Arreda! - berrava ele. - Arreda demónio! Baldwin! Baldwin! Socorro!

Ouvi-o cair, levantar-se, voltar a cair.





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