Eneida - Cap. 4: Eneias e Dido Pág. 59 / 235

A chama do amor que Cupido plantara no coração de Dido foi assim insuflada pelas palavras animadoras de Ana, ao mesmo tempo que abafava a voz do pudor.
Foram então as duas irmãs percorrer os altares e orar aos deuses. De acordo com o costume, imolaram ovelhas de dois anos a Ceres, deusa legisladora e padroeiro da fertilidade dos campos. A Apolo, a Baco e, sobretudo, a Juno, que guarda ciosa os laços do matrimónio. A formosa Dido, ela própria, segurando na mão direita uma taça, derramou vinho sagrado entre os chifres de uma vaca branca, pedindo os favores dos deuses. Seguia pelo templo ante os altares e imagens dos deuses, renovando as oferendas e procurando ler os presságios nas entranhas quentes das reses sacrificadas. Ai! Espíritos ignaros dos adivinhos! De que servem os vaticínios, os votos e os altares, se uma mulher está apaixonada? Uma chama devora-lhe a medula e sangra uma tenra ferida no seu peito.

E inquieta, e infeliz, ela vagueia pela cidade, sem poder repousar ou dormir—tal qual a gazela incauta que, ferida pela seta traiçoeira do pastor, é por este perseguida, e pelos cães, e que, esperando e buscando refúgio numa moita acolhedora, corre e voa pela solva, sem saber que o ferro mortífero lhe está preso à ilharga.

Dido conduziu Eneias num passeio pelas muralhas, mostrando-lhe as riquezas e os progressos da cidade. Começava a falar, quando teve de interromper o que dizia, porque, aproximando-se a noite, recolheram novamente ao salão do banquete, onde Eneias, instado pela rainha apaixonada, repetiu os lances e os feitos da história de Tróia, já contada. E nem por isso lhe era menor a atenção de Dido, que o ouvia embevecida.

Depois de se separarem, já adiantada a noite, estando as estrelas a aconselhar o sono, ficou a rainha, triste e solitária, no palácio. Longe de Eneias, a sua imaginação via-o e ouvia-o permanentemente. Para minorar a sua dor, tomava nos braços o pequeno Ascânio, vendo, com olhos apaixonados, no rosto do filho, as feições do pai. Já não pensava na sua cidade de torres altas, na juventude que se exercitava para as batalhas, nem nos portos e baluartes que seriam a garantia de Cartago contra os inimigos. Num último e doloroso gemido, atirou-se soluçando sobre o divã, onde Eneias estivera deitado naquela noite, antes de partir.





Os capítulos deste livro