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Capítulo 2: II - Dom Bibas

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Muitas paixões, sobre as quais a civilização estampou o ferrete de ignóbeis, ainda não eram hipócritas; porque a hipocrisia foi o magnífico resultado que a civilização tirou de sua sentença. Os ódios e as vinganças eram lealmente ferozes, a dissolução sincera, a tirania sem mistério. No século XVI, Filipe II envenenava seu filho nas trevas de um calabouço, no princípio do XIII, Sancho I de Portugal, arrancando os olhos aos clérigos de Coimbra que recusavam celebrar os ofícios divinos nas igrejas interditas, chamava para testemunhas daquele feito todos os parentes das vítimas. Filipe era um parricida polidamente covarde; Sancho um selvagem atrozmente vingativo. Entre os dois príncipes há quatro séculos nas distâncias do tempo e o infinito nas distâncias morais. Numa sociedade em que as torpezas humanas assim apareciam sem véu, o julgá-las era fácil. O dificultoso era condená-las. Na extensa escala do privilégio, quando um feito ignóbil ou criminoso se praticava, a sua acção recaía, por via de regra, sobre aqueles que se achavam colocados nos degraus inferiores ao perpetrador do atentado. O sistema das jerarquias mal consentia os gemidos: como seria portanto possível a condenação? As leis civis, na verdade, procuravam anular ou pelo menos modificar esta situação absurda; mas era a sociedade que devorava as instituições, que não a compreendiam a ela, nem ela compreendia. Porque de reinado para reinado, quase de ano para ano, vemos renovar essas leis, que tendiam a substituir pela igualdade da justiça a desigualdade das situações? É porque semelhante legislação era letra-morta, protesto inútil de algumas almas formosas e puras, que pretendiam fosse presente o que só podia ser futuro. Mas no meio do silêncio tremendo de padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer e subir a íngreme e longa escada do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga, e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de humildes. Este homem era o truão. O truão foi uma entidade misteriosa da Idade Média. Hoje a sua significação social é desprezível e impalpável; mas então era um espelho que reflectia, cruelmente sincero, as feições hediondas da sociedade desordenada e incompleta. O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espírito do criminoso no potro imaterial do vilipêndio.

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Capa do livro O Bobo
Páginas: 191
Página atual: 14

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
I - Introdução 1
II - Dom Bibas 8
III - O Sarau 18
IV - Receios e esperanças 27
V - A madrugada 38
VI - Como de um homenzinho se faz um homenzarão 45
VII - O homem do zorame 59
VIII - Reconciliação 66
IX - O desafio 80
X - Generosidade 90
XI - O subterrãneo 97
XII - A mensagem 110
XIII - A boa corda de cânave de quatro ramais 123
XIV - Amor e vingança 141
XV - Conclusão 157
Apêndice 173