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Capítulo 2: II - Dom Bibas

Página 15

E ele ria; ria contínuo! Era rir diabólico o do bobo: porque nunca deixava de ir pulsar dolorosamente as fibras de algum coração. Os seus ditos satíricos, ao passo que suscitavam a hilaridade dos cortesãos, faziam sempre uma vítima. Como o ciclope da Odisseia, na sala de armas ou do banquete; nos balcões da praça do tavolado ou das tauromaquias; pela noite brilhante e ardente dos saraus; e até junto dos altares, ao reboar o templo com as harmonias dos cânticos e salmos, com as vibrações dos sons do órgão, no meio da atmosfera engrossada pelos rolos do fumo alvacento do incenso; em toda a parte e a todas as horas, o bufão tomava ao acaso o temor que infundia o príncipe, o barão ou o ilustre cavaleiro, e o respeito que se devia a dona veneranda ou a dama formosa, e tocando-os com a ponta da sua palheta, ou fazendo-os voltear nos tintinábulos do seu adufe, convertia esse temor e respeito numa cousa truanesca e ridícula. Depois, envolvendo o carácter da nobre e grave personagem, atassalhado e cuspido, num epigrama sangrento ou numa alusão insolente, atirava- o aos pés da turba dos cortesãos. No meio, porém, das risadas estrepitosas ou do rir abafado, lançando de passagem um olhar brilhante e vago ao gesto confrangido e pálido da vítima, e, como o tigre, recrudescendo com o cheiro da carniça, o bobo cravava de salto as garras naquele a quem ódio profundo ou inveja solapada fazia saborear com mais entranhável deleite a vergonha e abatimento do seu inimigo. Então a palidez deste pouco a pouco deslizava num sorriso, e ia tingir as faces do cortesão que havia instantes se recreava folgado na vingança satisfeita. Se era em banquete ou sarau, onde o fumo do vinho e a ebriedade que nasce do contacto de muitos homens juntos, das danças, do perpassar das mulheres voluptuariamente adornadas, do cheiro das flores, das torrentes de luz que em milhões de raios aquece o ambiente, a loucura fictícia do truão parecia dilatar- se, agitar-se, converter-se num turbilhão infernal. Os motejos e as insolências volteavam sobre as cabeças com incrível rapidez: as mãos que iam unir-se para aprovar estrondosamente o fel da injúria vertido sobre uma fronte odiada ficavam muitas vezes imóveis, contraídas, convulsas, porque entre elas tinha passado a seta de um epigrama azeirado, e havia batido no coração ou na consciência de quem imaginava só aplaudir a alheia angústia. E por cima daquele estrépito de palmas, de gritos, de rugidos de indignação, de gargalhadas, que gelavam frequentemente nos lábios dos que as iam soltar, ouvia- -se uma voz esganiçada que bradava e ria, um tinir argentino de guizos, um som baço de adufe; viam-se brilhar dois olhos reluzentes e desvairados num rosto disforme, onde se pintava o escárnio, o desprezo, a cólera, o desfaçamento, confundidos e indistintos.

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Capa do livro O Bobo
Páginas: 191
Página atual: 15

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
I - Introdução 1
II - Dom Bibas 8
III - O Sarau 18
IV - Receios e esperanças 27
V - A madrugada 38
VI - Como de um homenzinho se faz um homenzarão 45
VII - O homem do zorame 59
VIII - Reconciliação 66
IX - O desafio 80
X - Generosidade 90
XI - O subterrãneo 97
XII - A mensagem 110
XIII - A boa corda de cânave de quatro ramais 123
XIV - Amor e vingança 141
XV - Conclusão 157
Apêndice 173