Procurar livros:
    Procurar
Procurar livro na nossa biblioteca
 
 
Procurar autor
   
Procura por autor
 
marcador
  • Sem marcador definido
Marcador
 
 
 

Capítulo 2: II - Dom Bibas

Página 16

Era o bobo que nesse momento imperava despótico, tirânico, inexorável, convertendo por horas a frágil palheta em ceptro de ferro, e erguendo-se altivo sobre a sua miserável existência como sobre um trono de rei – mais porventura que trono; porque nesses momentos ele podia dizer: «os reis também são meus servos!». Tal era o aspecto grandioso e poético daquela entidade social exclusivamente própria da Idade Média, padrão levantado à memória da liberdade e igualdade, e às tradições da civilização antiga, no meio dos séculos da jerarquia e da gradação infinita entre homens e homens. Quando, porém, chamámos miserável à existência do truão, a esta existência que descrevêramos tão folgada e risonha, tão cheia de orgulho, de esplendor, de predomínio, era que nesse instante ela nos aparecera sob outro aspecto, contrário ao primeiro, e todavia não menos real. Passadas estas horas de convivência ou de deleite, que eram como uns oásis na vida triste, dura, trabalhosa e arriscada da Meia Idade, o bobo perdia o seu valor momentâneo, e voltava à obscuridade, não à obscuridade de um homem, mas à de um animal doméstico. Então os desprezos, as ignomínias, os maus tratos daqueles que em público haviam sido alvo dos ditos agudos do chocarreiro, caíam sobre a sua cabeça humilhada cerrados como granizo, sem piedade, sem resistência, sem limite: era um rei desentronizado; era o tipo e o resumo das mais profundas misérias humanas. Se naqueles olhos então assomassem lágrimas, essas lágrimas seriam ridículas, e cumpria-lhe tragá-las em silêncio; se um gemido se lhe alevantasse da alma, fora necessário recalcá-lo: porque lhe responderia uma risada; se a vergonha lhe tingisse as faces, deveria esconder o rosto: porque essa vermelhidão seria bafejada pelo hálito de um dito de torpeza; se uma grande cólera lhe carregasse o gesto, tornar-lhe-iam como remédio um insolente escárnio. Assim no largo tirocínio de um dificultoso mister, o seu primeiro e capital estudo era varrer da alma todos os afectos, todos os sentimentos nobres, todos os vestígios da dignidade moral; esquecer-se de que havia no mundo justiça, pudor, brio, virtude: esquecer-se de que o primeiro homem entrara no paraíso animado pelo sopro do Senhor, para só se lembrar que saíra dele, já precito, por uma inspiração de Satanás.

<< Página Anterior

pág. 16 (Capítulo 2)

Página Seguinte >>

Capa do livro O Bobo
Páginas: 191
Página atual: 16

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
I - Introdução 1
II - Dom Bibas 8
III - O Sarau 18
IV - Receios e esperanças 27
V - A madrugada 38
VI - Como de um homenzinho se faz um homenzarão 45
VII - O homem do zorame 59
VIII - Reconciliação 66
IX - O desafio 80
X - Generosidade 90
XI - O subterrãneo 97
XII - A mensagem 110
XIII - A boa corda de cânave de quatro ramais 123
XIV - Amor e vingança 141
XV - Conclusão 157
Apêndice 173