O Bobo - Cap. 16: Apêndice Pág. 179 / 191

Tal era a forma primitiva e singela de um espectáculo de eras bárbaras que a civilização desenvolvendo-se gradualmente por alguns séculos ainda não pôde desterrar da Península, e que nos conserva na fronte o estigma de bárbaros, embora tenhamos procurado esconder esse estigma debaixo dos ouropéis e pompas da arte moderna, e pleitear a nossa vergonhosa causa perante o tribunal da opinião da Europa com sofismas pueris e ineptos.

Quando a alegria frenética excitada entre os espectadores por aquela cena repugnante acalmou um pouco, e o cadáver do generoso animal foi arrastado para fora da liça, muitos malados peões e servos moçárabes e mouros tinham já começado a transportar para o ponto mais central do vasto terreiro grande soma de peças de madeira de diversos feitios. Aquelas peças, artificiosamente adaptadas umas às outras, não tardaram a converter-se num tablado quadrangular, que se elevava apenas a três palmos do chão, e em cujos cantos bojavam quatro torres de sobrada altura mas de diminuto âmbito. As tábuas que formavam as faces exteriores da alterosa máquina eram pintadas de modo que fingiam uma silharia de pedra, a qual, partindo das ameias que figuravam o circuito dos eirados, descia até à base das torres e prolongava-se forrando todos os quatro lados daquela espécie de base comum. No alto dos eirados, encostadas às ameias exteriores, erguiam-se algumas tábuas brancas em cujos topos superiores se viam alvos circulares em preto, onde tinham de bater, vibrando a lança e correndo à rédea solta, os cavaleiros que lançassem a tavolado, na frase daquela época. As tábuas só podiam ser derribadas quando a lança ferisse o respectivo alvo. Vários motivos tinham tido os magistrados do concelho para reservarem o aparecimento dessa nova visualidade para tal conjuntura. O inesperado do espectáculo, a rapidez da edificação, o artístico do desenho, tudo era para eles título de legítima glória. Além disso, a obstrução da liça por tamanha máquina durante a primeira parte do festejo daquela tarde podia ter obstado à perfeição do combate, inconveniente que eles tinham sabido remover com sumo tino, e como varões afeitos a ponderar as conveniências do Estado. Mas que espectáculo era esse a que sem dúvida pertenciam como actores mudos os simulacros das quatro torres? Era o famoso jogo sem o qual quase não se podia conceber regozijo público, o jogo do tavolado, conhecido além dos Pirenéus pela denominação de tabula rotunda, que, remontando pela origem às tradições de Carlos Magno e do rei Artur, transportado para a Península se alterara profundamente, sem deixar por isso de ser um exercício de destreza e de força.





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