Todavia estas evidentes cautelas e precauções militares desdiziam bastante do que então se passava no castelo. Era pela volta das dez horas de uma noite calmosa de Junho. A lua cheia batia de chapa nas muralhas esbranquiçadas, e as sombras das torres maciças listravam de alto a baixo as paredes dos paços interiores de faixas negras sobre a pálida silharia de mármore, tornando-a semelhante ao dorso da zebra selvática. Contrastavam, porém, a melancolia e silêncio deste espectáculo nocturno as torrentes de luz avermelhada jorrando por entre os mainéis que sustinham ao meio das altas e esguias janelas as bandeiras e laçarias de pedra. Estes mainéis e bandeiras, formando flores e arabescos, recortavam de mil modos aqueles vãos afogueados e brilhantes, rotos através das listas alvacentas e negras, de que a lua arraiava a fronte do soberbo edifício. Na penumbra do extenso pátio que corria entre as muralhas e a frontaria do paço, branquejavam os saios dos cavalariços1, que tinham de rédea as mulas de corpo dos senhores e ricos- -homens; cintilavam os freios de ferro polido e as selas à mourisca, tauxiadas de ouro e prata; ouvia-se o patear dos animais e o sussurro dos servos conversando e rindo em tom sumido. Mas era lá em cima, nas salas esplêndidas, que se viam passar rápidos como sombras os vultos de damas e cavaleiros arrebatados no turbilhão das danças; lá soavam as melodias das cítolas, das harpas, das doçainas, por entre as quais rompiam os sons vívidos das charamelas, o estrépito das trombetas, o rebombo dos tímpanos; e quando aquelas toadas afrouxavam e morriam em sussurrar confuso, retinia uma voz áspera e aguda no meio daquele ruído de festa. Então fazia-se um profundo silêncio, que não tardava a ser partido por gritos e risadas estrondosas, que restrugiam pelas abóbadas, cruzavam-se e confundiam-se repercutidas em burburinho infernal. Via-se claramente que a embriaguez da alegria havia chegado ao auge do delírio, e que daí avante não podia senão decrescer.