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Capítulo 4: IV - Receios e esperanças

Página 36

Revoou-lhe então lá dentro o pensamento de que no cantar do truão havia o que quer que fosse fatídico, e no seu olhar brilhante o que quer que fosse diabólico. Sentia baterem-lhe com força as artérias frontais, e sussurrar-lhe nos ouvidos um zumbido intolerável. Esqueceu-se de quem era o homem que assim se assentara na cadeira real, para dali lhe repartir as últimas injúrias que naquela noite distribuíra com mão larga. A imaginação lhe transformou o gesto jovial do bobo no aspecto tétrico de um enliçador, e o seu cantarolar ridículo nos acentos sinistros de uma velha estriga. Esta espécie de delírio em que havia caído Garcia Bermudes – era ele o cavaleiro – o obrigou a sair precipitadamente da vasta e já mal alumiada sala, e a descer ao pátio interior, sem olhar para trás, sem encarar o bobo, cujo canto soturno findou numa destas gargalhadas, que não parecem vir da alma, e que contristam, porque, naquele que as solta, revelam alienação mental.

Garcia Bermudes parou: o pátio estava deserto: um cavalariço estirado a um canto dormia profundamente, com as rédeas da mula possante enfiadas no braço. O frescor da noite e a serenidade do céu cintilante de estrelas acalmaram o ânimo agitado do cavaleiro; mas o pulso batia-lhe violento e febril. O extravagante pesadelo de homem acordado, que tivera, não procedera do bobo: procedera do lance doloroso por que pouco antes passara. No meio do sarau, na ebriedade da festa, ele ousara finalmente o que até aí não havia ousado. Tudo quanto uma paixão sincera tinha veemente, enérgico, tempestuoso, tudo dissera a Dulce: esse amor, que com tanta arte ela soubera conter nos limites de mistério, deixara de o ser. Mas aquela alma, que parecia tão meiga, tão branda, tão fácil a todos os contentamentos, a todos os afectos, achou-a ele indomável e esquiva a tanto amor. Esta repulsa esmagara o coração de Garcia Bermudes e a sua imaginação delirou. O raio fulminara o cedro: que muito era que ele balouçasse pendido?

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pág. 36 (Capítulo 4)

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Capa do livro O Bobo
Páginas: 191
Página atual: 36

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
I - Introdução 1
II - Dom Bibas 8
III - O Sarau 18
IV - Receios e esperanças 27
V - A madrugada 38
VI - Como de um homenzinho se faz um homenzarão 45
VII - O homem do zorame 59
VIII - Reconciliação 66
IX - O desafio 80
X - Generosidade 90
XI - O subterrãneo 97
XII - A mensagem 110
XIII - A boa corda de cânave de quatro ramais 123
XIV - Amor e vingança 141
XV - Conclusão 157
Apêndice 173