O Bobo - Cap. 8: VIII - Reconciliação Pág. 71 / 191

Em vez de se acalmar a agitação que lhe despedaçava o coração, este bateu com mais violência ao entrar ali. Tudo estava como dantes, o céu, a noite, o jardim: só um amor de mulher mudara: mas esse amor fora para ele o universo, e o que via em redor de si não era mais que uma imagem mentirosa da realidade, lançada sobre o túmulo do passado, sobre as ruínas da sua íntima existência. Nas recordações de outrora havia para ele indizível saudade, mas saudade árida e atroz, sem consolação nem lágrimas. Assentado no poial, com a fronte entre os punhos, o pobre trovador, engolfado em pensamentos tenebrosos, parecia esquecido dos seus próprios intentos, do tempo que fugia, e dos riscos que o cercavam, quando, no meio do silêncio profundo que reinava no jardim, um ténue ruído veio despertá-lo da imobilidade externa em que o lançara o intenso viver da sua alma.

Este ruído o fez erguer a cabeça e lançar os olhos para o lado donde partia aquele som duvidoso: defronte dele, e bem perto, uma porta rodava lentamente sobre os gonzos; era a do corredor que dava para a sala de armas. Egas pôs-se em pé, e apalpou o punho da espada. Lembrava-se perfeitamente de uma noite – fazia nesta três anos – em que assim a vira abrir, e passar um cavaleiro, cujo vulto semelhava o do conde de Trava. Esta noite lhe ficara gravada indelevelmente na memória, porque fora aquela em que vira Dulce pela última vez, partindo para o Oriente. A dois passos deles se aproximara o vulto encaminhando-se lento para os aposentos reais. Egas recordava-se bem desse instante de receio e delícias, em que na mão de Dulce unida aos seus lábios sentira palpitar o amor e o susto; em que ele vira cruzar-lhe o delírio celeste da felicidade à imagem de um assassínio. Agora esta imagem, então negra e maldita, como que lhe sorria, porque não se misturava com ideias de ventura, mas com as agonias da desesperação. Daquela vez um suor frio lhe manara da fronte ao arrancar o punhal do cinto: desta o seu espírito quase folgava ao imaginar que alguém se encaminhava para ali da sala de armas, e que ele tinha uma espada. Talvez Dulce aqui mesmo jurara a outro o amor que lhe mentira a ele! Talvez o seu rival a buscava!... Refugiu deste pensamento; porque era um pensamento que parecia esmagar-lhe o coração.





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