O Crime do Padre Amaro - Cap. 23: Capítulo 23 Pág. 449 / 478

E depois dum momento:

- Que tal aspecto tem ela? Está corada? Está inquieta?

- Não senhor, está bem. Só a choramigar, a falar no pequeno...

Diz que o quer hoje por força...

- Converse com ela, distraia-a... Veja se ela adormece...

A Dionísia retirou-se; e o abade logo com cuidado:

- Ó doutor, supõe que lhe possa fazer mal o afligir-se?

- Pode-lhe fazer mal, abade, pode - disse o doutor que rebuscava na sua farmácia portátil. Mas eu vou-a fazer dormir... Pois é verdade, a Igreja hoje é uma intrusa, abade!

O abade tornou a levar as mãos à cabeça.

- Escusa de ir mais longe, abade. Veja a Igreja em Portugal. É grato observar-lhe o estado de decadência...

Pintou-lho a largos traços, de pé, com o seu frasco na mão. A Igreja fora a Nação; hoje era uma minoria tolerada e protegida pelo Estado. Dominara nos tribunais, nos conselhos da Coroa, na fazenda, na armada, fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da maioria tinha mais poder que todo o clero do reino. Fora a ciência no país; hoje tudo o que sabia era algum latim macarrônico. Fora rica, tinha possuído no campo distritos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu triste pão diário do ministro da Justiça, e pedia esmola à porta das capelas. Recrutara-se entre a nobreza, entre os melhores do reino; e hoje, para reunir um pessoal, via-se no embaraço e tinha de o ir buscar aos enjeitados da Misericórdia. Fora a depositária da tradição nacional, do ideal coletivo da pátria; e hoje, sem comunicação com o pensamento nacional (se é que o há) era uma estrangeira, uma cidadã de Roma, recebendo de lá a lei e o espírito...

- Pois se está assim tão prostrada, mais uma razão para a amar! - disse o abade, erguendo-se escarlate.

Mas a Dionísia tinha de novo aparecido à porta.

- Que temos mais?

- A menina está-se a queixar dum peso na cabeça. Diz que sente faíscas diante dos olhos...





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